segunda-feira, 25 de julho de 2016

Nelson Albissú na Entrevista de Domingo

CIDADES
24 de julho de 2016  Comentários (0)  Cidades  1
Nelson Albissu é escritor e dramaturgo. (Foto: Arquivo)
Nelson Albissu é escritor e dramaturgo. (Foto: Arquivo)

ELIANE JOSÉ
Aos 22 anos, o escritor e dramaturgo Nelson Albissú foi estudar à noite para concluir o primeiro grau, inacabado na meninice. O autor de 64 títulos infantis, publicados em espanhol, francês, inglês e, daqui a pouco, em mandarim, lamenta ter conhecido Monteiro Lobato adulto. Na adolescência, devorou Freud e a obra de Jorge Amado. Alma e mão de escritor vão amadurecer mais tarde, quando escritos bobos, em guardanapos da lanchonete do Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito da Universidade Braz Cubas foram parar na mesa de José Veiga, dono de conhecida gráfica mogiana e, depois, impressos. Leitor de jornal, revista, livro, bula de remédio, Nelson Albissú diz nunca ter pensado em teatro e literatura até conhecer Clarice Jorge, Adamilton Andreucci, Gil Fuentes. Nem os amigos mais chegados acreditavam que ele deixaria a promissora carreira na indústria para seguir pelo caminho oposto, já pai dos quatro primeiros filhos, aos 34 anos. Nelson está a um mês dos 68 anos. Para esta Entrevista de Domingo o traçado era contornar a vida acadêmica e pública do paulistano nascido num parto natural no bairro do Ipiranga, na Capital, os tempos vividos em Santo André, a vinda para Mogi das Cruzes durante a instalação da Resana (hoje,  Reichold Do Brasil) num grande terreno da Vila Cintra, em Braz Cubas, e a experiência contra o câncer no pâncreas, que o surpreendeu na última noite do Carnaval que passou. Logo no início ele freia: “Eu não gostaria de falar sobre a doença. Ainda trato de algo que não consigo definir”. Pedido feito, atendido em parte, acompanhe trechos da envolvente fala sobre a vida, amizade, velhice, presente e futuro:

Nelson, conte sobre sua origem.
Nasci numa madrugada fria, no final de agosto, na casa onde morávamos, no Ipiranga, em São Paulo. A parteira era Amábile, que ficou conhecida por ter ido presa, depois, por um parto malsucedido. O meu nome foi escolhido para ser de um irmão, nascido antes de mim, e que morreu cedo. O meu pai, Casemiro Albissú, era contra repetir o nome, queria Luiz Carlos, em homenagem ao Prestes, líder comunista que ele idolatrava. Minha mãe, Lourdes Marin, insistiu e fui registrado Nelson.

E o Albissú?
É sobrenome da família de origem árabe, das Astúrias, na Espanha. Significa ‘o branco”, embora os meus traços sejam árabes.

Seu pai era comunista?
Era. Ele foi lavrador em Taubaté, de onde saiu em busca do sonho de ser operário, industriário na Capital, quando o meu avô morreu. Trabalhou com os ingleses nas Linhas Correntes, que só admitiam gente “bonita”. Em São Paulo, por causa das opiniões dele, a família foi muito perseguida – ele estendia um fio de arame na porta de entrada até onde estava dormindo, para ser avisado da chegada da Polícia. Por isso, foram viver em Santo André.

E você, adotou o comunismo?
Não, não e devo isso ao meu tio, Nestor. Quando tinha 18 anos e  já trabalhava, fui comprar o meu primeiro terreno. Eu  já era casado, com a Geny. E precisei de um fiador, falo com um e com outro e foi ele quem me fiou. Em casa, todos eram comunistas, minha avó jogou fora todos os santos. Acreditavam na promessa de que os comunistas iriam dar casa para todos. Imagine, nem  na Alemanha o regime deu certo. O meu tio era desacreditado porque bebia, mas disse e eu gravei: enquanto todos esperam pela casa dos comunistas, eu já tenho a minha casa.

A família morava junta?
Sim, moramos com a minha avó Maria Francisca. Para mim, foi dela que herdei a sensibilidade. Tinha conhecimentos natos, olhava o céu, e reconhecia as estrelas, constelações; olhava uma planta e sabia como se chamava, para que servia.

E como foi a infância?
Muito diferente. Com 8 anos já trabalhava de maneira informal com a venda de tijolos, areia, depois, porcelanas. Com 13 anos e meio fui registrado. Discordo do tratamento dado agora a quem trabalha cedo. Era uma forma de aprender um ofício. Conheço homem com 23 anos sem um dinheiro no bolso, quando tem, o pai quem deu.

E as memórias desse tempo?
O menino que há em mim não acaba.

Você casou com 18 anos?
É quase uma tradição na minha família. Casei com 18 anos e meio, minha filha, com 17 e meio, e tenho uma bisneta, e uma filha, com apenas 22 anos.

E quando você veio para Mogi?
Vim quando a Resana estava sendo instalada em Braz Cubas, por isso, tenho raízes “brascubenses”. Trabalhei ali 19 anos, quando comecei uma vida totalmente diferente, fui dar aula, de manhã, tarde e noite, em Santos, onde atuei durante 26 anos, na Faculdade Lusíada, como professor, na UniSantos, na gradução e com a terceira idade, e na área da Cultura, no Colégio de Coração de Maria. Ia no domingo, voltava na quarta-feira, quando comecei na Cultura (Prefeitura, em Mogi),e, como o horário era flexível, trabalhava de dia e de noite.

Da indústria para a sala de aula?
As coisas acontecem na minha vida, e de repente. Um dia eu me vi fazendo mestrado na USP, nunca sonhei com isso. Meu pai era um analfabeto e não acreditava nessa coisa de escola. Desde criança os professores viram algum talento para redação, tirava nota, não aprendi o português. Eu estudei somente até o quarto ano. Depois, fui trabalhar, e voltei para a escola aos 22 anos. Na Faculdade de Direito, na UBC (a primeira foi de Administração de Empresas), uma amiga, Marilena, reuniu o que eu escrevia em guardanapos e mandou para o José Veiga, dono da gráfica Veiga. Um dia ele me liga e pergunta se poderia publicar. E eu, sempre prático, do setor administrativo, perguntei: quanto vai custar? Ele: nada. Eu nunca fui artista e até hoje não sou um poeta. Quando escrevo, sempre tenho a noção do início, meio e fim da história, da peça.

Conviveu com os poetas mogianos?
Sim, com o João Evangelista, Inocêncio Candelária (colunista de O Diário), Botyra Camorim. Tem um caso engraçado: no final do governo Waldemar Costa Filho, o Roberto Monteiro cuidava da Cultura e foi jornalista de O Diário, me convidou para um encontro de escritores e saiu uma briga terrível, porque se fez uma enquete sobre a reativação do Centro Mello Freire de Cultura. Eu não entendia nada daquilo, votei com a maioria. Foi criado o Centro Mello Freire de Cultura e a Nyssia de Freitas Meira, queridíssima amiga, a grande delegada da gramática, me convidou para ser o secretário. Fazer ata para a Nyssia? Eu disse: não, não, não. E ela: sim, sim, sim. Eu fui, imagine você! Não gosto de fazer atas, mas cuidei delas no Grupo de Administradores de Pessoal (GAP), onde tenho amigos até hoje.

E depois?
Comecei a circular com esse pessoal, durante o governo do prefeito Antonio Carlos Machado Teixeira, com Armando Sérgio da Silva na Cultura, e com outros, Adamilton, Denerjânio (Tavares de Lira). E, depois, a Prefeitura promoveu um concurso de Prosa e Verso. Foram 287 concorrentes, e eu consegui o primeiro no lugar nas duas categorias. O vencedor recebia um cheque. E a Clarice me ligava, na Resana, falando que eu teria de ir buscar. Bem, a indústria é uma coisa rígida, ninguém sai assim, quando quer. Ela me disse: você conhece a Clarice Jorge? Eu respondo, não. E combinamos para eu pegar o dinheiro com ela, à noite, no Colégio São Marcos, onde ela ensaiava o Teatro Experimental Mogiano (TEM). Eu fui uma, duas vezes…

E como foi esse contato com o teatro?
Nos laboratórios não entrava na minha mente aquilo “de o ator se sentir uma semente”, o processo de criação. Sempre fui do administrativo, mas aquilo me encantava. Conheci o Gil Fuentes, que queria montar a Maria Minhoca, da Maria Clara Machado, mas precisava de um ator, que não aparecia. E eu fui ser o João Buldog, sem prática nenhuma. Descobri que gostava dos bastidores, da teoria, da dramaturgia. O ensino brasileiro fala da prosa, do verso, nunca estimula a leitura de uma peça de teatro, que tem uma carpintaria exclusiva, uma engrenagem própria. Por que ninguém monta Machado de Assis? Porque as peças dele não têm essa carpintaria.

Nasce a primeira peça, a Última Estação – Se Tivéssemos Tempo?
Eu escrevi em 1984, escrevi e mostrei para a Clarice, que não disse se gostou ou não gostou. Ela é assim. Só respondeu: ‘Vou montar’. Foi um tempo de grande movimentação teatral, tanto que criamos uma federação de teatro. Não tinha nem videocassete, tinha peça de teatro toda noite.

A peça seguiu?
Quando você pensa em teatro, em ser ator, pensa em fazer sucesso na Globo. E não é assim. Li na Folha de S. Paulo sobre o festival de teatro do Sesi, falei com a Clarice, e ela: “é carta marcada, não vamos entrar”. Inscrevi e entramos, eram 12 peças inscritas e a única de autor vivo era a minha. O restante era Shakespeare, Nelson Rodrigues, o que tinha morrido mais recente.

A indústria ficou no passado?
Os amigos acreditavam que, quando eu pedi demissão, iria montar um negócio, um açougue. Me entrego ao que faço. Na Resana eu plantava uma árvore, adquiria um ventilador, vibrava. A empresa estava mais do que na minha camisa, era meu sangue. Sempre fui um ‘bom escravo’, diz um amigo, e eu fui totalmente feliz lá. E o mesmo ocorreu depois, em Santos, com a terceira idade, e em Mogi. Eu amo Mogi de coração, há 42 anos. Quando cheguei, o Mário Ioshida (já falecido, morador de Braz Cubas) me viu com o meu fusca velho, calça boca de sino e cabelo a lá Beatles, não deixou nem eu sair do carro, ele pegou e me levou ao Sesi, para conhecer o diretor. Como a dizer, aqui não é terra de ninguém. E Mogi tem isso, veja o nosso Arquivo Histórico, poucas cidades tiveram mogianos que pensaram em preservar sua história como aqui.

O idoso foi tema do mestrado?
Eu fiz a escola de teatro com o Antunes Filho. E fiz mestrado em teatro, na área de teoria dramática, em sete anos, antes eram 10 anos, e hoje, em um ano e meio, veja você. Quando surgiu a ideia, “Os Velhos de Jorge Andrade”, o crítico Sábato Magaldi [1927-2016], falecido na semana passada, disse que eu não iria conseguir. Ele morava no mesmo prédio do Jorge Andrade [1922-1984], acompanhou a criação das dez peças que são interligadas e fazem uma grande costura sobre a história do Brasil, do índio aos anos do ouro, do café e a industrialização de São Paulo. Eu defendi que o personagem era um idoso, e o Magaldi falava que não era.  Depois, me diria: nem o Jorge Andrade tinha essa noção. Foi nota de louvor de toda a banca. Tratei o velho como velho, e não com a frescura de hoje, de terceira idade, idoso.

O que mudou?
Nós temos um bom estatuto do idoso, que disciplina o que é e como deve ser tratado um idoso. O que as pessoas não compreendem é que há um coração de rapaz e uma perna de velho dentro de um corpo idoso. Tem gente muito velha aos 40 anos e velhos fantásticos aos 90 anos. A felicidade desse idoso me encanta. Quando a Clarice encena pela primeira vez, usa chinelos de dedo, havaianas, saia surrada e lenço. Hoje, 30 anos depois, a Maria Amélia, com 73 anos, usa blusinha de alcinha em cena. Essa é a grande mudança. A peça se tornou atemporal.

O idoso está mais protegido?
O estatuto é muito bom, mas não será implantado da noite para o dia, há uma caminhada para isso.

Dentro de casa também?
Sim, e o Estado diz que primeiro ele é responsabilidade da família, depois da sociedade, por último dele. E há casos de violência, graves. Nunca é um terceiro que tirou o dinheiro de um idoso, é um filho, um neto, um sobrinho. Nem todo velho é doente.  O nosso papel é conectar secretarias – Saúde, Cultura, Educação, além de promover ações.

E você gosta dessa atuação?
Gostava muito de atuar na Cultura, tivemos grandes momentos, o Mateus (Sartori) faz ótimo trabalho, iniciado pelos que o antecederam, Armando Sérgio, Adamilton, Denerjânio, e outros. Mas, sinto que me realizo mais com o idoso.

O idoso sempre esteve na sua obra.
É uma ficha que caiu depois. Em grande parte dos livros tem uma avó, um velho. O coral de vozes para mudar tem de começar pela criança, que não percebe o idoso. Aliás, na criança habita já o idoso. E muitos dão conta disso. É interessante a relação da criança com o idoso. Observe os dois juntos, é um encontro criativo, sem mentira. O idoso diz não gosto disso, e a criança também. A criança me diz: tio, não gostei daquele desenho azul porque não gosto do azul.

Nelson, você voltará a escrever em O Diário?
Quem sabe. Estou num período de ‘inação’… E confesso que sou bastante infiel com o meu leitor. Nos tempos do jornal o prazer era encontrar as pessoas que liam as crônicas. Com o livro também é assim. Encontro adultos que dizem, li O Bicho Homem (1989), a Charalina (1989). Esse é o maior prazer da vida do autor: aquela criança virou moço ou moça e guarda o que leu na lembrança.

E como você começou a escrever para criança?
Aconteceu, compreende (uma palavra sempre presente na conversa). Era amigo da Telume Helen, uma artista que trabalhava no Bradesco, de echarpe, vaso de flor na mesa, cabeça de poeta. Ela desenhava, eu escrevia. Ela era do Grupo Zapt, de bonecos, e eu a convidei para fazermos o Antunes Filho, em São Paulo, íamos de trem. Hoje, atua com o cenógrafo Ferroni. Foi assim, comecei a escrever, deu certo. A mesma coisa ocorreu quando o prefeito Bertaiolli me convidou para ir para a Coordenadoria do Idoso porque ficou sabendo do meu trabalho  em Santos. Estou aqui, e feliz.

E o que você tem feito?
Com o câncer, eu me trato, fico por conta disso. Tenho mais lido, leio muito. A TV me aborrece, eu acho tudo muito repetitivo, o repórter me fala à noite, a mesma coisa que disse à tarde. Não estou em depressão. O câncer não subiu para a minha cabeça. A vida continua me encantando. Sem ser um falso romântico, gosto de viver, de ouvir as pessoas, de saber de suas histórias, de estar com os amigos, como o Adamilton, que me diz que ainda vamos sentar na Praça Oswaldo Cruz para ver Mogi passar, e eu brinco, eu sentarei no Largo do Carmo, onde vive o teatro.

Uma filosofia, antes do ponto final.
Eu não gosto dessa coisa do “se’ eu fosse, se tivesse. Eu digo: se não tem uma viola para tocar, bate um pandeiro, faça do jeito que dá para ser feito. Não dá para ser um aposentado na vida. Aposenta quando morrer. Conheci a energia elétrica com 10 anos, a televisão com 16 anos, passei a infância com o nariz preto de fuligem, da lamparina, que era mais barata do que o lampião, que tinha o risco de quebrar. Quando eu penso nisso digo, eu andei.


Fonte:O Diário de Mogi